quinta-feira, 29 de agosto de 2013

A Insubmissão como obra de arte

Uma bem nutrida plêiade de autores, desde Nietzsche até Adorno, passando por Heidegger, Marcuse e Benjamin, não se cansaram de anunciar ao logo dos últimos cento e cinquenta anos a morte da arte. Não admira pois que os especialistas opinem hoje que a instituição artística atravessa a fase final do seu esgotamento, contando já com um certificado oficial de morte, ou que, pelo menos, se encontra já em adiantado estado de decomposição, o que não impede obviamente de continuar a haver artistas, críticos, teóricos de arte, revistas de arte, páginas, notícias e anúncios sobre arte, e até mesmo a continuação do funcionamento de faculdade e departamentos universitários de arte, procurados como nunca por uma enorme clientela, facto este que, de resto, não está ainda devidamente esclarecido... O anúncio antecipado da morte da arte não impede igualmente o uso sistemático e altissonante do termo “arte”, tanto para efeitos políticos ( veja-se a impressionante máquina de fazer dinheiro em que se tornou a Cultura) como para efeitos especulativos ( o negócio da arte), ou ainda como simples objecto de teorização.
Novidade marcante é, sem dúvida, utilizá-lo para efeitos de luta antimilitarista e crítica à guerra e ao complexo militar-industrial dominante. Na verdade, entre as novidades recentes do panorama artístico tem surgido um novo tipo de artista: o artista insubmisso militar. O caso mais conhecido foi o do estudante das Belas Artes que se declarou refractário e insubmisso ao Serviço Militar Obrigatório, ao Exército e a todo a máquina estatal de guerra invocando a favor da sua atitude motivos e razões do foro artístico, aproveitando até a ocasião para redigir um Manifesto Artístico Insubmisso, ao longo do qual argumentava e defendia a sua concepção da insubmissão à tropa e à guerra como obra de arte, recorrendo para tal a toda uma forte tradição artística insubmissa – Dada, Tzara, Duchamp, Beuys, Zaj,... – legitimada pela História da Arte, e ensinada inclusivamente nas Faculdades Estatais de Belas-Artes. Toda a sua alegação rematava com a invocação do Artigo 13º ( “É livre a criação intelectual, artística e científica”) e do Artigo 78º ( que dá ao Estado a incumbência de apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e colectiva), ambos da Constituição da República.
Claro está que a estratégia jurídico-argumentativa apresentada sofre de não poucas fraquezas face ao conteúdo e espírito do texto constitucional que noutras partes consagra injunções de teor e fins opostos aos que foram invocados, pelo que não foi difícil rebatê-los na decisão que veio a ser proferida pouco tempo depois.
Por outro lado a via escolhida para realizar a crítica antimilitarista não se nos afigura ter tido grande eficácia. Todos sabem a pouca receptividade dos militares e até do Estado a razões puramente artísticas para a fundamentação de atitudes e comportamentos. É certo que teve oportunidade para desmistificar certos preconceitos vulgares e muito comuns que estão na origem do Exército e do Estado ao recorrer a razões de ordem artística. Todavia, a luta antimilitarista só se mostrará consequente se tiver impacto junto de conjuntos significativos da população, o que nunca veio realmente a acontecer
Além do mais enveredar por uma “estratégia artística antimilitarista” envolve algum perigo na medida em que o raciocínio que aí se convoca é muito semelhante ao utilizado nas operações militares ( e já agora, o mesmo pensamento se poderá aplicar ao de “vanguarda artística”), se bem que dúvidas não subsistem que os inimigos mais persistentes dos militares não são propriamente os militares adversários mas sim os antimilitaristas.

Acerca do acto em si enquanto atitude que releva do foro artístico será necessário, como ponto prévio, elucidarmo-nos sobre se a arte existe, sobre o que é a arte, e ainda se é possível uma definição institucional da mesma.
Sustentar a insubmissão à tropa e à guerra em nome da arte sugere logo uma perspectivação da prática artística como desobediência, transgressão de normas e até de delito. E não há dúvidas que a arte do século XX nos oferece uma grande parentesco entre o impulso criativo e anticonvencional, antagónico à dimensão burguesa convencional estabelecida. Este parentesco encontra-se inclusivamente corroborado na moderna ideia segundo a qual a atitude não conformista é a condição prévia e indispensável para a criação artística.
Porém não nos iludamos: o anticonvencionalismo, o inconformismo, a desobediência, a insubmissão, o delito,etc, são sempre conceitos relativos a um determinado grupo de referência que, por consenso, define socialmente o conteúdo da norma e do desvio, pelo que uma desobediência relativamente a um grupo social ( dominante, por exemplo) poderá ser vista também como de obediência a outro grupo social ( dominado).
De qualquer forma o certo é que existem na História da arte sólidas referências, isto é, precedentes reconhecidos, que permitem encarar a criação artística não tanto como uma habilidade especial para gerir certos materiais e formas, mas como antinomia de toda e qualquer restrição e limitação. Nas palavras de Beuys “o artista e o delinquente são companheiros de caminhada, dispõem ambos de uma louca criatividade, e ambos carecem de moral...”
Evidentemente que não se trata aqui de atribuir a categoria artística a alguns bem conhecidos delitos ( como os crimes perfeitos, o dos colarinhos brancos, as falsificações refinadíssimas, as fugas de prisão...), nem é sequer intenção nossa parte trazer à colação os numerosos artistas que foram delinquentes ( Caravaggio foi um criminoso, Rimbaud e Verlaine são conhecidos pelas rixas em que se envolveram, e os primeiros dadaístas de Zurich famosos desertores da I Grande Guerra), trata-se sim de apurar se a arte supõe em si mesma alguma forma de insubmissão ou de delito. O caso de Egon Schiele, preso por ser considerado pornógrafo, a acção dos primeiros graffiters novaiorquinos alvo da perseguição da polícia, as galerias de arte processadas por imoralidade após as exposições de Mapplethorpe, as provocadoras exibições públicas da Action and Body Art na década de sessenta, o happening político de Maio 68, o Accionismo vienense e a sua luta anarquista por uma liberdade dionisíaca sem limites, o movimento Fluxus, a Anti-Arte, Zaj e o não-Zaj, e em grande medida de toda a corrente conceptualista ( desenvolvida desde Duchamp), representam todos eles o questionar da própria ideia de arte.
Reinstauradora do vínculo platónico entre moral e estética, será que a arte deve abandonar a complacência administrativa e avançar no caminho da crítica institucional tal como faz Hans Haacke que denuncia a experiência quotidiana capitalista, lançando as suas obras contra as instituições artísticas estabelecidas, e indústrias congéneres?
Inspirados nesta ideia numerosos artistas optaram por esta via ( bastará lembrar o caso de Wolf Vostell, Julien Blaine, Joel Hubaut, Patrice Loubier...) e que acabam justamente por reconhecer a natureza artística a uma acto como o de insubmissão antimilitarista.
Reticentes a uma concepção destas serão certamente as instituições estabelecidas como as academias, universidades, associações de críticos, museus, etc , circunstância essa que só dará razão a Gomez de la Serna quando este escreve “...as academias não têm nada a ver com a arte; constituem-se acima de tudo como recintos tétricos, repletos de chefes de língua de negócio”.
Chegamos assim a este ponto do problema: se as faculdades de arte não têm capacidade para dizer o que é a arte, então quem o pode fazer? A resposta óbvia é remeter para o próprio foro de cada indivíduo na hipótese de se considerar a arte como uma experiência eminentemente subjectiva e intransferível, e que dura enquanto acontece num determinado sujeito criador. Mas nesse sentido qualquer um pode ser artista, quer seja militar ou civil, oprimido ou opressor.
Mas se se busca uma resposta mais elaborada então as coisas complicam-se. E torna-se hoje ainda mais difícil descortinar alguma saída para esta questão depois de tantas evoluções a que se assistiu neste domínio no último século.
Novos enfoques sobre o assunto ( o que é a arte?) não vão faltar com o passar do tempo, mas hoje desgraçadamente temos de reconhecer que a arte é definida institucionalmente pelos...media! São estes, mais o dinheiro investido ( ou a investir) que definem institucionalmente a natureza artística de uma obra.
Por isso, um artista insubmisso militar que queira elevar o seu acto à categoria de arte não tem outro solução que não seja comprar um bom e apelativo anúncio televisivo, ou em algum outro meio audiovisual de massas...
Podemos concluir assim que a Arte a a Justiça têm algo de comum entre si : ambas são instituições fraudulentas.
A Arte por dissimular uma existência improvável ( quase impossível) nas actuais condições demotecnocráticas e hipertecnologizadas em que a própria realidade acabou por sucumbir às mãos de ficções tornadas realidade.
A Justiça não somente pelas disfuncionalidades congénitas de qualquer aparelho ou máquina judicial mas sobretudo pela contradição que se revela entre as suas leis e os fundamentos morais que pretensamente aquelas se apoiam, como ainda por sancionar justamente os indivíduos que ao avaliar criticamente a actuação do Estado, qual máquina de poder em potência e em acto, mais longe levam o seu direito de cidadania (1) ao exigir que o Direito Penal deste corresponda ao seu próprio fundamento originário , que é o de se constituir como um conjunto normativo que garanta tão só os requisitos mínimos para a convivência social, (2) assim como à recusa de se aglutinar a uma massa informe de indivíduos através da activa participação cívica e social.

Tradução livre ( e adaptada de um artigo de José Saborit Viguer publicada na Revista El Viejo Topo nº 96)