quinta-feira, 29 de agosto de 2013

O homem mais odiado pela América


Afinal, o homem mais odiado pela América não é um fundamentalista religioso, mas um livre-pensador que quer uma vida sem deus

Antes de se tornar o emblemático anticristo da América, de incarnar o bode expiatório da direita cristã , de desencadear a fúria do Congresso, o desprezo dos senadores e a acrimónia do presidente americano, Michael Newdow era um simples homem de 49 anos, recentemente divorciado e exercendo a ingrata ainda que bem apreciada profissão de médico de urgências num hospital da Sacramento, na California. Por virtude talvez dos seus hábitos de prestar cuidados aos seus semelhantes, Michael Newdow também começou por se preocupar em curar as tendências mais teocráticas do seu país. Ou seja, graças à justiça humana começou a contestar Deus. Ou por outras palavras, começou a contestar a inumeráveis invocações em nome de Deus que pululam hoje em dia na América, apesar desta se presumir um estado laico.

Assim, em nome de um ateísmo procedimental, começou por intentar uma acção judicial por motivo da sua filha, de 8 anos, ser obrigada em cada manhã, em plena escola pública, a recitar a “Pledge of Allegiance”, espécie de oração cívica onde se faz explicitamente referência a Deus, muito embora os princípios constitucionais do país consagrarem claramente a separação entre a Igreja e o Estado.

Em tempos normais uma tal acção passaria mais ou menos desapercebida na multidão de outras acções judiciais que diariamente inundam a máquina judicial. Acontece que, depois do 11 de Setembro, face ao crescendo sentimento de patriotismo e da multiplicação de actos de fé, seria impensável e até inacreditável que um tribunal aceitasse o requerimento de urgência a pedir a declaração de inconstitucionalidadde às várias alusões religiosas em que são pródigas as aulas nas escolas públicas americanas nos dias que correm. Mas foi justamente o que aconteceu no último dia 26 de Junho no tribunal superior que agrupa os nove Estados principais do Oeste. O Tribunal deu-lhe então razão.

Logo que o veredicto foi conhecido, Newdow tornou-se aos olhos da América conservadora uma espécie de Rosenberg maléfico, e um perigoso elemento subversivo. Os próprios membros do Senado recordaram que as suas sessões solenes sempre começavam com uma oração. Por sua vez, os senadores logo se apressaram a recitar, face às câmaras das televisões, o “The Pledge of Allegiange” com a mão sobre o peito, de forma a reafirmar que os Estados Unidos eram uma “nation under God”. Não faltaram também parlamentares a cantar a plenos pulmões “God bless America” e até um eleito do Ohio veio a terreiro recordar que o seu Estado tinha por devisa “With God all things are possible”. Neste coro de anjos ( ou de anjinhos) veio então o porta-voz da Casa Branca a lembrar que o dólar, a moeda americana, tem cunhada na sua face a frase “In God we trust”.

O modesto ateu que era Michael Newdow não esperava reacção tão vasta e violenta. Ele, que só queria fazer respeitar a Constituição do seu país, os Estados Unidos da América, que consagra a natureza laica do Estado, e com base nesse princípio exercer o seu direito de educar a sua filha num mundo sem Deus. Afinal o seu gesto tinha acordado os fantasmas religiosos e beliscado as excrescências que se tinham incrustado ao longo do tempo na definição original do Estado americano como um Estado laico. Com efeito, a referência a Deus não existia no texto original do “The Pledge of Allegiance” escrito por Francis Bellamy em 1892. Não foi senão em 1954 que, sob a influência do maccarthismo se acrescentaram as palavras “under God”

Escandalizada pela atitude do seu vizinho que reside a seu lado , Marta Carrera já avisou os seus filhos para não se aproximarem de Michael, o americano traidor. Dia após dia Michael recebe insultos e ameaças de morte.

Enquanto espera a decisão do Supremo tribunal ele prepara já o seu próximo combate: contestar a frase de caracter religioso incrustada nas moedas americanas que considera igualmente inconstitucional face à natureza laica do Estado. Imagina-se já as cambalhotas que não vão dar os fiéis depositários de Wall Street e os anátemas que não lhe lançarão os cardeais financeiros da Finança americana.
Perante um desafio de tal tamanho – exigir que o Estado americano cumpra a sua própria Constituição que o define como Estado laico – bem lhe poderemos augurar o desfecho: a exibição em toda a sua plenitude do abuso do poder através da prevalência da vontade do Estado frente à letra da Constituição. Lições da História...