Mónica Hargraves trabalhava no Reserva Federal prestando vassalagem diária ao sacrossanto dólar. O seu lema, como o de tantos outros conterrâneos, estava inscrito no reverso desses papéis verdes que são o bezerro de ouro do século XX: «In God We Trust» ( Cremos em Deus – que é como quem diz cremos na dívida pública, na economia global, no direito inalienável das multinacionais em dividirem entre si o bolo planetário).
Mas ao cabo de alguns anos, Mónica Hargraves acabou por se refugiar no bastião da «resistência local», nessa Ithaca de ressonâncias míticas que pouco ou nada têm a ver com a ideia que construímos dos Estados Unidos.
Em Ithaca teve que arranjar uns biscates por falta de negócio. Em Ithaca a população local cerrou fileiras para impedir o desembarque das grandes cadeias de hipermercados. O restaurante Moosewood e o mercado de produtos agrícolas acabaram por ser as principais atracções turísticas da cidade. Na verdade, os 30.000 habitantes de Ithaca têm o índice mais alto de associativismo dos Estados Unidos.
Até a prestigiosa Universidade de Cornell emprestou a Ithaca o seu prestígio intelectual. Uma década de gestão municipal à esquerda trouxe para as ruas da cidade o sentimento de que «vivemos em comunidade» . Entre os bosques e os lagos que rodeiam a cidade surgiu entretanto uma ecoaldeia que é considerada como «um modelo nacional de desenvolvimento sustentável». Já para não falar da força do movimento cooperativista e da agricultura biológica.
Mas o que chama mais atenção em Ithaca é o seu dinheiro local, colorido, que inventaram para – como dizem os seus habitantes - »controlar os efeitos sociais e ambientais do comércio».
«Aceiram-se HORAS de Ithaca» pode-se ler numa livraria local. E perante o espanto do visitante é possível ver um cliente a retirar da carteira uns bilhetes amarelos e laranjas que recordam, à falta de melhor imagem, os do Monopoly.
- Queres, em troca, dólares ou em HORAS? – pergunta a vendedora.
- Tanto faz – responde o cliente.
Mónica Hargraves a prófuga da Reserva Federal, é uma das artífices destas HORAS de Ithaca, herdeiras dos míticas LETS (Sistemas de Intercâmbio e de Comércio Local) que funcionam há décadas no Canadá, na Austrália e no Reino Unido.
As HORAS são mais que um simples instrumento de troca. São dinheiro contável e sonante reconhecido pelas próprias leis norte-americanas, que autorizam a emissão de bilhetes locais desde que sejam mais pequenos, tenham uma equivalência fixa com o dinheiro federal e sejam tributados.
Uma HORA vale pois o mesmo que 10 dólares, mas há bilhetes de 2 hras, de meia hora, de m quarto de gora e até de um oitavo de uma hora.
O dinheiro local é emitido por Conselho Assessor no qual estão representadas as forças vivas da cidade. E como garantia não há reservas de dólares ou lingotes de ouro; o único aval é o trabalho e as mercadorias de quem se compromete a aceitá-lo como sistema de troca.
A presumida inscrição no dólar – Cremos em Deus – é substituída pela inscrição «Cremos em Ithaca».
As figuras de Washington, Lincoln, Jackson e demais ídolos do império norte-americano foram simplesmente substituídos pelo que é mais representativo da idiossincrasia local. O papel utilizado nos bilhetes é de cañamo, dificílimo de falsificar, e no seu reverso pode-se ler em maiúsculas: Time is Money.
Mais abaixo, em letras miúdas, explica-se então ao portador a razão de ser das HORAS em Ithaca – que foram criadas «para estimular a economia local, reciclar a riqueza autóctone e criar novos postos de trabalho…Este dinheiro, que tem nas mãos, está assente no verdadeiro capital real: os nossos músculos, as nossas ferramentas e os nossos recursos naturais.»
«Em muito pouco tempo conseguimos criar uma vibrante economia local», orgulha-se em declarar Mónica Hargraves. «Cada ano movemos já uns 750.000 dólares em transacções efectuadas por meio das HORAS. E, para mais, este é um dinheiro que ficará sempre aqui, a circular e a gerar riqueza dentro da comunidade. As multinacionais, muito provavelmente, nunca o virão aceitar.»
As HORAS já são aceites em dezenas de lojas, cinemas e restaurantes. As HORAS circulam também no mercado agrícola e nas cooperativas. A Caixa de Aforro de Ithaca aceita HORAS como amortização dos empréstimos, e pode-se também pagar em HORAS o aluguer de um andar, a revisão do carro, a consulta de um advogado, dentista, médico, ou a simples tatuagem num braço.
A lista de pessoas que aceita o pagamento em dinheiro local é publicada mensalmente num boletim – o Hour Town - que rivaliza já com as Páginas Amarelas a quantidade enorme de serviços anunciados.
«Funcionamos de um modo muito simples», explica Paul Glover, fundador e caixeiro deste sistema de dinheiro local. « No fundo, o que fazemos eé reinventar o dinheiro: voltar a dar-lhe o sentido de uma ferramenta ao serviço da comunidade, antes que a especulação e a dívida pública terem desvirtuado o seu autêntico valor».
Glover está à frente do Conselho Assessor, e tem entre mãos a máquina de fazer bilhetes, que funciona ao ritmo dos negócios locais: « Quando o dono de uma loja, ou um profissional por conta própria, aceita o dinheiro local como forma de pagamento, recebe em troca duas HORAS do nosso Banco Central. Ao fim de 8 meses, sempre que mantenha o seu vínculo ao dinheiro local, receberá outra HORA grátis».
«É assim que se dá a emissão de bilhetes de forma gradual e continuada», acrescenta Glover.«O que estamos a criar é, nem mais nem menos, uma rede de intercâmbio, integrada por gente que confia nos seus vizinhos e nos recursos da comunidade. O nosso sistema é perfeitamente compatível como dólar. Nem sequer pretendemos extinguir o dinheiro federal, apesar de sentirmos orgulho cada vez mais por estarmos a retirar-lhe espaço de manobra.»
No princípio o Governo Federal observou algum receio quando, em 1991, viu a nascer esta alternativa ao dólar. Considerou-o pouco menos que um caso anedótico e sem projecção. Mas o movimento não parou e mais de sessenta vilas e cidades norte-americanas decidiram entretanto seguir o exemplo.
De Ohio ao Hawai, da Califórnia ao Texas, do Maryland a Massachusetts, todos podem encontrar com uma grande variedade de bilhetes alternativos ao dólar. Em Hot Springs chamam-lhe Mountain Money (dinheiro da montanha); em Bolinas, o nome é Sand Dollars (dólares de areia); já em Berkshires, a designação escolhida é Valley Dollars ( Dólares do vale).
Mas na grande maioria dos casos adoptou-se a designação de HORAS, e o fenómeno que começou nas comunidades agrícolas já se estendeu a bairros das grandes cidades como Detroit, Indianapolis e Santa Fe.
Em San António, Texas, funcionam desde há algum tempo as Community Hours, impulsionadas por um casal – Mary e Jim Lampkin – que convenceu os comércios locais da necessidade de se passar à acção contra a «acção destrutiva das multinacionais».
Em Santa Fe, Novo México, existe até uma versão bilingue dos bilhetes alternativos nos quais se pode ler: «As HORAS são um dinheiro apoiado pelo nosso tempo, pelo nosso esforço e desejo de nos apoiar uns aos outros.»
Uma das últimas comunidades a aderir ao dinheiro alternativo foi em Willimantic Connecticut. A unidade local chama-se City Bread ( Pão da Cidade) e em poucos menos de um ano estendeu-se por todo o comércio do centro histórico, que começou a renascer das cinzas depois da invasão dos shoppings centers.
Para Lewis Solomon, professor da Georgetown University e autor de vários livros sobre o boom do dinheiro local nos USA, «estamos perante um processo lógico que surge como resposta à economia global».
«Os cidadãos deram-se conta de que podem defender-se por si mesmos das forças destrutivas que ameaçam as suas comunidades», escreve Solomon. «O dinheiro autóctone é também uma maneira de injectar sangue novo nas sofridas economias locais sem necessidade de esperar pelos subsídios de Washington».
Solomon prognostica o florescimento do dinheiro local por todo o território americano que, poderá inclusivamente, a longo prazo, forçar uma reestruturação do sistema monetário central. Num futuro não está posto de parte a redefinição do que hoje entendemos por dinheiro.
Paul Glover, o inventor das HORAS, é mais peremptório: « Cada vez é maior a distância entre as duas economias –a do grande capital e a dos cidadãos. A primeira é representada pelo dólar. A segunda é a que nós reivindicamos com as HORAS e que se baseia no trabalho real e nos recursos da comunidade».
Glover lamenta a maré negra dos hipermercados, as cadeias de fast food e dos shoppings que alastram por esse mundo fora, com a conivência das próprias vítimas, que são os cidadãos, convertidos em consumidores clónicos.E acrescenta: «Não podemos ficar de braços cruzados vendo as multinacionais a vampirizar as economias locais e a destruir o planeta».
As HORAS são o antídoto necessário contra a globalização:«celebramos a cooperação e não a cobiça. Visamos a riqueza colectiva e não a especulação. O dinheiro local faz-nos sentir parte de um grupo de partilha dos mesmos recursos e dos mesmos interesses. Pensamos também na antiga utopia igualitária. Uma hora de trabalho vale exactamente o mesmo para todos: dez dólares».
Massachusetts é o Estado mais rico em dinheiro alternativo, desde que se tornou conhecido o caso de Frank Tortoriello,proprietário de um restaurante que precisava de uma imperiosa injecção de dinheiro. Como os bancos não lhe concediam qualquer empréstimo, Tortoriello teve a ideia de pedir crédito aos seus vizinhos e clientes. Emitiu os seus próprios bilhetes, os Deli Dollars, e vendeu-os s nove dólares por unidade. Recolhido o dinheiro e feitas as obras começou a devolver com juros o dinheiro emprestado sob a forma de bilhete onde dizia «Vale por dez dólares a hora do almoço ou do jantar».
A ideia de Tortoriello foi rapidamente seguida por outros comerciantes que assim garantiam fundos próprios. Por onde quer que se vá na região de Berkshires, a uns 250 km de Boston, encontramos uma variedade inimaginável de sistemas de trocas.
As iniciativas locais estão apoiadas pela Associação de Autoajuda para uma Economia Regional (SHARE). E a sede da emblemática Schumacher Society, que difunde as ideias do autor da obra Small is Beautiful, um clássico dos anos 60, encontra-se situada na região. Recorde-se que aquele autor preconizava uma espécie de «budismo económico» face à globalização.
Na Schumacher Society trabalham Bob e Susan Witt, dois dos pioneiros do dinheiro alternativo, e editores da revista especializada no tema, a Local Currency News.
«A melhor maneira de reconstruir não só a economia como ainda os laços comunitários é emitir os bilhetes alternativos à escala local», defende Susan. «O dinheiro adquire um valor insuspeitado, que vai muito para além do que está no objecto de troca Quem decide aceitá-lo sabe que não só está a contribuir para o seu enriquecimento pessoal como a contribuir para a comunidade».
Na própria capital do império, Washington, criou-se os «Time dollars», uma alternativa electrónica de dinheiro.
«Estamos a experimentar o ADN do dinheiro», explica o seu criador, Edgar Cahn.«Em vez de utilizarmos bilhetes, registamos todas as transacções no nosso banco electrónico. O tempo é a nossa unidade de troca, e o deve e haver mede-se apenas por horas trabalhadas.»
Os bancos electrónicos do Tima Dollars» apareceram depois em quase todas as grandes cidades americanas. Graças a este sistema uma mãe pode, por exemplo, pagar as facturas do médico fazendo umas horas de trabalho para outra mãe.
«A nossa sociedade tem muitíssimas necessidades por satisfazer e um sem número de recursos por aproveitar, diz Edgar Cahn. «Ora o dinheiro, tal como hoje concebemos, é incapaz de preencher essas lacunas…Na verdade, há um tipo de intercambio que não é satisfeito pelo comércio lucrativo: um intercambio de carácter moral, que sirva para a construção de um mundo mais justo e equitativo».
Em Nova Iorque apareceu já um grupo de intercambio constituído só por mulheres. Começaram por ser só duas, e agora já ultrapassam a centena.
Na era da moeda única europeia, na antesala daquilo que chamam a economia global, há quem navegue em direcção contrária, propondo um tipo de economia de andar por casa. Talvez a resposta mais cabal a um sistema viciado na especulação e na burocracia.
Texto de Carlos Fresneda
Publicado no Ajoblanco nº 110, Setembro de 1998
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